sexta-feira, 29 de maio de 2020

O vazio do circuito fechado de 40 dias

O despertador toca. Olho para ele entre pestanas semi cerradas. Aperto o soneca e tento desesperadamente voltar para aquele mundo escapista do sono, do sonho, do surreal.

Finalmente, desisto, por vergonha, porque meu parceiro me diz que já são 10 horas e que assim não posso continuar, "olha o Sol brilhando lá fora". Meu corpo dói. Foi o maldito exercício que fiz ontem. "Como se exercitar com o próprio peso", só gostaria que o meu peso não fosse tanto. Poderia ser um pouco menor a carga.

Inicio a rotina, "porque não são férias". E não são. O stress é igual ou ainda maior do que o do dia-a-dia normal. Lavo o rosto, escovo os dentes, mas nem me importo mais com o estado do meu cabelo. Deveria me importar. Talvez, se eu fizer uma chapinha me sinta melhor. Não, o vazio continua. Faço o café preto, passo e repasso na esperança de que aquelas gotas de energia renovem todo o meu corpo e preencham o que estou sentindo falta.

Ainda não é suficiente, mas vamos lá. Lavo a louça tentando assistir à um reality show que me remeta à dias rasos e preocupações leves. " Vou fazer um raio-x para provar que não tenho prótese de silicone". Já é o quinto dia desta rotina, mas a louça parece mais uma hidra, a cada prato que eu lavo surgem três no dia seguinte. Encomendo o almoço; ou reesquento; ou então junto tudo o que sobrou, bato no liquidificador e chamo de sopa. Depois disso olho para a louça e decido que esta batalha ficará para amanhã.

Hora do exercício. Nunca consegui achar espaço no dia para fazer estas seqüências. Agora é a hora. Usando todo o conhecimento acumulado de iôga, pilates, ballet, jazz, academia e fisioterapias infinitas fazemos o circuito. Ai! Tudo bem, mais tarde tem a aula gravada da academia. Ai ao quadrado! Amanhã não vou conseguir nem levantar um garfo.  Por outro lado agora vou ser a mulher-elástica em questão de flexibilidade. Mas mais ou menos.

Próximo minotauro a ser derrotado é ver quais as roupas que precisam ser lavadas. Só que eu já lavei. Ontem e anteontem. E pendurei. E dobrei. E guardei. Ok, não tenho mais como evitar, vamos trabalhar. Começam as infinitas horas de aula online, o que é um conforto pois tenho a prova de que existe vida fora do apartamento, já que se eu apenas olhar para as varandas vizinhas e para a piscina vazia eu simplesmente vejo que estou em uma cidade deserta do velho oeste. Quem dera.

Aulas, aulas e aulas. Para variar faço eu uma aula. De holandês, porque já fiz inglês, espanhol e alemão. Talvez devesse melhorar o alemão antes. Mas quem sabe latim não seja mais interessante? Talvez não. Quem sabe deveria aprender a programar. "A programação será o novo idioma do novo século". Se tivermos um próximo século, década, ou mês, na medida que estamos. Nem sei se teremos um amanhã. Ah, não. Teremos, sim, porque a louça estará lá me esperando.

Depois da seqüência de exercícios (HIT) para super queimar as calorias, considerando que ficar sentada o dia inteiro realmente não queima caloria, acho que talvez eu compense com  os litros de café que estou tomando. Quem sabe? Bom, vou decidir qual série verei a noite. Hum, acho que deveria ler um livro. Para qual mundo quero fugir? Para a Escócia em 1770, ou Estados Unidos? Ou então para um futuro distópico que pressagia o fim do mundo, da economia e uma guerra mundial, ah, espera. Esse é o noticiário das 21h.

Não quero ligar para meus pais, para os meus avós, ou mandar mensagem para os conhecidos. Essa quarentena criou uma distância que não é preenchida pela interação online, ou pelo café. Não é preenchida por mensagens. É um pânico, um frio na barriga, uma instabilidade.  Acho engraçado uma quarentena ser de quinze dias. Mas talvez não sejam quinze dias. Talvez sejam quarenta dias mas não nos contaram toda a verdade.

Já posso voltar a dormir. Deve ser a hora e eu devo estar cansada. Talvez os sonhos me permitam ver as pessoas que eu amo. Talvez essa quarentena não exista. A realidade é muito mais irreal do que os abstratos incoerentes do sono. Até amanhã, quando este loop recomeçar costurado com o vazio e a esperança desconexos de que vai passar e não há nada que eu possa fazer. Talvez.


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