sexta-feira, 29 de maio de 2020

O enfermeiro de cabelos encaracolados - CONTO

            Meu nome é Rafael, ariano com um ascendente em câncer que não me dá sossego e tinha 23 anos quando consegui a vaga para uma oportunidade que mudou a minha vida.

                Eu cresci em uma cidadezinha no interior de Minas Gerais e nunca senti que realmente me encaixava ali. O que eu precisava fazer para conhecer mais? Não sabia na época mas comecei a dar um primeiro passo que me levaria mais longe do que qualquer um dos meus amigos do colégio.  Via que precisava de muito mais do que havia a minha volta, não cabia dentro de mim. Assim, tendo o objetivo de ir cada vez mais longe, a lugares desconhecidos e querendo conquistar meu espaço, estudei que nem um louco para conseguir passar no vestibular e entrei em odontologia na Universidade Federal de Minas Gerais, onde vi que o mundo ia muito além do que imaginava.

                 O que me levou a ser um aluno dedicado, correto e honesto. Assumo que, às vezes tão honesto que meus amigos mais próximos queriam me esganar, mas nada que eu pudesse fazer, estes eram meus valores. Eu tive a iluminação divina de desde o começo conhecer 3 amigas que me ajudaram muito a perceber e ser eu mesmo. Sabemos que essa época de faculdade é o momento que os "jovens" realmente firmam suas escolhas e sua personalidade e elas estavam lá para mim, e acredite em mim, eu estive lá para elas quando precisaram também. Éramos inseparáveis e quando olho para o Rafa do começo da faculdade, que penava em conseguir combinar as peças de roupa e que via que verde limão, laranja e vermelho claramente eram ok para ir treinar voleibol, eu sei que elas tiveram um dedinho importante na minha vida.

                Foi com elas que eu tive a conversa mais importante da minha vida, pelo menos até ali, e quando falei em voz alta o que eu já tinha certeza há muito tempo. E a partir de então eu comecei outra jornada absurdamente longa e desgastante buscando me permitir ser, simplesmente ser.  Comecei a não me importar em tomar uma cervejinha, ou duas ou três quando ia nas festas, afinal não devia nada para ninguém não é? Eu morava sozinho, pagava minhas contas e o que estava me prendendo? O medo de não me aceitarem? Quem não me aceitar? Eu mesmo em alguns momentos? De qualquer forma, não quero entrar nessa filosofia toda porque já passou, o importante é que eu criei vergonha na cara e passei de ficar chateado com a minha amiga quando ela contava para outras pessoas que eu era gay, para começar apoiar o movimento e a representatividade. Isso levou anos, mas queria já deixar claro desde o começo que eu sai do ponto A e cheguei em B.

                Ainda em Belo Horizonte, meu próprios horizontes se expandiram tanto que nem a faculdade era mais o suficiente. Vi um edital para um intercâmbio. Já pensou? Morar fora do país? Que insano! Bom, me inscrevi e, mesmo com alguns tropeços no inglês, consegui uma vaga. Conquistei uma vaga para estudar nos Estados Unidos! Em uma faculdade majoritariamente negra. Ok, esse seria um desafio interessante! Entretanto, antes de eu dar o aceite consegui ser chamado para uma faculdade com um ranking mais alto no Reino Unido e assim começou a minha jornada que finalmente me tornou completo (não que eu já não fosse, mas me fez perceber isso sem nenhum a dúvida). Como tudo teria sido diferente se eu tivesse ido para os EUA...

                Eu sou popular, sim, tímido, as vezes, mas me comparam com um labrador. Sim, é quase um apelido. É difícil eu não me dar bem com alguém e do alto dos meus 1,80 e barba bem cuidada, eu não sou de jogar fora. E eu sei bem disso, mas a gente finge demência as vezes, né? De qualquer forma, assim que o grupo de brasileiros chegou e se encontrou no aeroporto eu bati o olho naquela pessoa, uma versão morena minha, olhos castanhos onde os meus eram verdes, cabelos encaracolados e negros onde os meus eram lisos e loiros. Ricardo era o centro das atenções no grupo onde estava e nesse momento se tornara o centro da minha atenção. Não dou muito o braço a torcer, simplesmente porque não sou assim, então não dei muita bola e sabia que era um intercâmbio, eu estava lá para conhecer pessoas novas, visitar todo o país e principalmente estudar! Mas aquele estudante de enfermagem não me saia do pensamento nem por um minuto.

                Aparentemente era recíproco pois eu o fazia rir, brincávamos um com o outro, cutucando, mordendo e infernizando. Ele era tão inteligente e tão vulnerável que o queria segurar em meus braços e não queria que saísse do meu lado. Ele era sagitariano e freqüentemente nossos fogos geravam atritos, tínhamos as discussões mais acaloradas e as risadas mais altas, e no momento seguinte eu sabia que ele era uma alma livre e solta. Ele tinha nascido para o mundo e sabia disso. Nosso primeiro beijo não foi uma surpresa, foi uma certeza. Eu sentia que nossas almas se conheciam de muitas vidas e que a nossa energia se complementava. Depois disso qualquer um que tinha esperanças de conseguir ficar comigo ou com ele simplesmente teve que seguir em frente. Nosso romance era o mais intenso, mais forte e mais certo.

                Os meses foram passando e a data de voltar foi se aproximando. Nós não nos permitíamos sonhar com o futuro e com um relacionamento no Brasil. Não falávamos sobre o assunto o carpe diem era a única coisa que nos importava. Os dias estavam contados, em 6 meses ele voltaria para o Sul do país e eu voltaria para Minas. Ele tinha sua família por lá, tinha sua faculdade e eu, bem, eu tinha toda a minha vida em Belo Horizonte. O que nós tínhamos em comum era Manchester e nada mais. Vivíamos cada dia como se fosse o último, o calendário com os dias riscados se aproximando da data de partida. Finalmente ele teve que voltar.

                Passamos a última semana olhando dentro dos olhos um do outro, lendo a alma, as palavras não ditas e as emoções que ardiam no peito.  A garganta apertada segurando o sentimento de Amor. Simples e puro Amor. Eu não podia permitir que eu ficasse ali, vulnerável e disponível para ele e permitir que eu fosse machucado pela sua partida. Nos despedimos e um pedaço de mim voltou para o Brasil.

                Eu tentei de todas as formas me divertir, sair com outros caras, até conheci um ou dois que me distraíram, mas não o suficiente para tirar o garoto de óculos e cabelos encaracolados do meu pensamento.  E olha, que era uma tentação danada, eu realmente queria me permitir mas agora era o meu coração que já não me obedecia. Os meses se passaram e eu via em cada esquina os fantasmas dos dias felizes e das caminhadas que fizemos, dos lugares que visitamos, dos piqueniques que comemos no parque e dos chocolates quentes que bebemos. E, é claro, o que doía ainda mais, dos dias e noites que passamos na biblioteca estudando para as provas e trabalhos. Até estudar estava ficando impossível.

                A data de voltar para o Brasil chegou e com um misto de ansiedade e de saudades misturado com uma dor de deixar o país que me deu tantos momentos felizes, senão os mais felizes até então, eu voltei para minha casa. Cheguei no meu alojamento na faculdade e me deparei desejando mandar uma mensagem para o Ricardo e dizer que estava novamente no mesmo lado do oceano que ele e que tínhamos que nos encontrar o mais rápido possível. Mas a quem eu estava enganando? A distância era muito grande.

                Um dia recebi um áudio corrido e ofegante dele dizendo que estava  pousando em Belo Horizonte e que não via a hora de me ver, quer dizer, tinha vindo para um congresso, mas esperava que tivéssemos a oportunidade de nos encontrar. O que isso significava? Faltavam ainda dois anos de faculdade para terminarmos. Não poderíamos ficar juntos! E naquela noite, nos encontramos depois de quase um ano afastados e não houve dúvida, seu olhar, o seu jeito e as suas piadas. Sua voz que me prendia. Eu senti todos os meus músculos relaxarem, todos os nós se desfazerem toda a dor se esvair e sabia que só me importava tê-lo em meus braços novamente. Reatamos os relacionamento que até então não tinha nome e ele se tornou um namoro. Cada um voltou para sua cidade e mês a mês, um visitava o outro. A ponte aérea mais parecia um uber de um bairro a outro.

                 O cansaço foi se acumulando, o dinheiro foi acabando e a distância começou a se adensar e se tornar mais larga. Ele era a minha prioridade, mais até do que eu mesmo e isso não estava bem. Eu precisava focar em mim e precisava que ele viesse me ver e me ligasse, escrevesse ou qualquer coisa. Cansei, cansei de estar em um relacionamento unilateral e Ricardo assumiu que também não estava fácil para ele e que ele precisava saber que eu não era apenas fruto de sua imaginação e sim uma pessoa real. Que eu era de carne e osso, pois ele estava começando a se esquecer do meu perfume. Então, acabou. Não por falta de amor, ou de carinho, por não querer. Não. Apenas pela distância. Cada um estava em um momento de vida diferente do outro e nada parecia favorecer esse alinhamento dos planetas.

                Anos se passaram para eu conseguir cortar finalmente as últimas ligações entre os nossos sentimentos. Foi uma das coisas mais difíceis que fiz na vida, eu sabia que conseguia viver com a nossa distância, mas ele não e eu não queria mais continuar a sofrer. Eu conheci outros caras, sai, dancei, bebi, beijei e dormi. Os meses voaram e os dias se tornaram incontáveis. Eu estava pensando em como simplesmente sumir com os fios novos de cabelos brancos (ou loiros extremamente claros, como eu gostava de pensar) quando eu recebi uma mensagem no celular. Eu não estava com muito tempo, mas podia ser importante e resolvi abrir. Era uma mensagem de Ricardo.

                Ele nunca foi de falar muito, dizia apenas: "Estou aqui e agora é a nossa hora". Nisso a campainha tocou e eu o vi em minha porta. Ricardo me contou que não queria me iludir ou criar expectativas antes de ter tudo concretizado e realizado. Ele havia passado em um concurso para trabalhar no hospital Mater Dei e estava de mudança para Belo Horizonte. Ele estava lá para ficar. Ele estava lá por mim, ele estava lá para mim e juntos começaríamos a escrever a nossa nova história.

 


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